quarta-feira, 3 de julho de 2013

“O Jardim Secreto”, um estudo de personagem


Frances Hodgson Burnett, inglesa de Manchester radicada nos Estados Unidos da América nasceu em 1849 e trouxe a luz a obra prima “O Jardim Secreto” em 1911, que virou filme em 1993 nas mãos da diretora Agnieszka Holland, produzido pelo mestre do cinema, ninguém menos que Francis Ford Coppola, com certeza o nome certo para levar uma obra dessa grandeza para as telonas, sob o selo de seu falido e emblemático estúdio independente American Zoetrope.

Burnett, nascida em família pobre, foi mais uma de tantas famílias que deixaram o velho mundo em busca da liberdade na América, onde esperava uma herança de um tio, o que não acabou ocorrendo, restando a escolha de trabalhar com costura e bordado. Morando no Tenessee e passando muitas necessidades, Frances decidiu abrir uma escola onde ensinava a quem quisesse entrar, enquanto escrevia contos, até vender o seu primeiro para uma revista, aos dezessete anos de idade, e em pouco tempo já havia economizado para voltar à Inglaterra, vivendo em ambos os países.

Autora de outros clássicos, como “O Pequeno Lorde” e “A Princesinha”, que também virou filme, Burnett lançou “O Jardim Secreto” em plena belle époque, uma nostálgica era de intenso clima intelectual e artístico antecedente a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Uma época de mudanças, inovações, novas tecnologias, paz, arte e cultura em todos os níveis sociais. Burnett foge de toda a modernidade afluente e buscou escrever um romance pleno de uma vida ao natural, no qual duas crianças com um pesado passado, crianças das quais nada lhe faltavam, encontram sua redenção em um jardim.

Produzido com apurado primor técnico por Francis Ford Coppola, o livro virou filme em 1993.
O cenário é uma imensa mansão, nomeada Mansão Misselthwaite, de mais de cem quartos, como é informado na história, situada num campo em uma “charneca”, um extenso campo verde, com rochas (sendo esse campo, junto com o jardim, um dos personagens centrais do livro), no interior de Yorkshire, o maior condado da Inglaterra. A mansão pertence a Archibald Craven, a autoridade máxima da casa e ausente durante a maior parte do tempo. Aparentemente, para esta família, nada deveria faltar.

A obra é muito completa, e simétrica na composição dos seus personagens, antagônicos, parecem se completar e se contrapor, na medida que mesmo tão opostos, nunca deixam de ser amigos, constituindo uma história singela, não de inimigos, não de brigas ou desafios, mas sim um drama no qual os personagens não tiveram escolha, enfrentam a realidade que a vida propôs à eles, e suas atitudes causaram os resultados.

Temos Medlock, a governanta da mansão, típica linha-dura, age por meio da opressão, impondo toda a sorte de limites às crianças. Dispõe de todo o dinheiro, comida, médicos, autoridade, inda assim não consegue progredir na educação e cura daquele lar. Seu contraponto é Susan Sowerby, mãe de Martha e Dickon (e outros vários filhos). Pobre, humilde e iletrada, mora em um pequeno casebre na charneca onde luta para sustentar e educar todos os filhos, e envolta a tantas dificuldades, é bem sucedida, ao contrário de Medlock. Ambas são muito amigas e se respeitam muito. Há ainda um elo intermediário, Ben Weatherstaff, um jardineiro durão do campo, de coração mole.

Somos apresentados à personagem Mary Lennox: uma menina, que segundo a narrativa, é feia, antipática, mirrada, apática, doente, e não gosta nem se interessa por nada, nem ninguém. Egoísta e egocêntrica, a pequena Mary, de 10 anos, nascida na Índia, época em que era governada pela Grã-Bretanha, perde seus pais pela peste da cólera, fato que obviamente mudará para sempre sua vida, pode-se dizer que a jovem vivia?
Quando Mary Lennox foi trazida para a Mansão Misselthwaite para morar com o tio, todos diziam que ela era a criança mais antipática que eles já tinham visto na vida. E de fato era verdade. Ela tinha um rostinho chupado, um corpinho magricela, e estava sempre de cara amarrada. Seu cabelo era amarelo e seu rosto era amarelo, porque ela havia nascido na Índia e vivia pegando uma doença atrás da outra. (BURNETT, 1911, p. 201).

Ela é a principal protagonista da história durante o primeiro ato do romance, no qual há dois mistérios: o próprio jardim, no qual ninguém tem autoridade de entrar, e o segredo de outro morador da mansão Misselthwaite: Collin Craven.

Filho de Archibald Craven, Collin tem 10 anos, dos quais todos foram passados em um dos vários quartos da mansão. Doente desde sempre, ele nunca saiu da cama, não toma sol, não pratica nenhuma atividade que não reclamar, pedir e chorar. Tão mimado quanto Mary, é insuportavelmente egoísta, mandão e extremamente depressivo. Fala com naturalidade que aguarda a morte a qualquer momento, e que não tem nenhuma esperança de envelhecer, além da certeza de que vai ficar corcunda como o pai. Seu nascimento coincide com a morte da sua mãe, um dos pontos chaves da história, que muda todos os rumos.

O personagem mediador entre Mary e Collin é Dickon. O menino do campo, que mora na Charneca, de família humilde, de poucos recursos, de relacionamento com a natureza e que, ao contrário de ambos, é livre e simplesmente não tem dificuldades nem dramas pessoais. Dickon é como o próprio livro diz, encantador. Ele é realmente encantador, e consegue transpor para a realidade uma história de uma pessoa que tem relacionamento com os animais, e prova que isso não é tolice nem bobagem, e faz tudo isso com extrema naturalidade, méritos da autora.

Archibald, o pai de Collin, entrou em profunda depressão com a morte de sua esposa e simplesmente não se relaciona com o filho, o que causa feridas em ambos os lados. Sem saber como enfrentar a vida, Craven parte em uma jornada de auto-reconhecimento, em busca de respostas, em busca de uma fuga.

É impressionante a habilidade com que Burnett compôs seus personagens, totalmente neutros de quaisquer estereótipos, livres de caricaturas, únicos e diferentes. Aonde esperaríamos, na literatura infantil, uma personagem protagonista descrita como feia e chata? Qual o fundamento dessa originalidade, que acabou dando certo? Possivelmente a não-industrialização da arte e literatura da época. Ainda assim, a trama é simples, mas consegue ser profunda.

Mary, a enfezadinha, como é apelidada na embarcação que a leva à Inglaterra, é o oposto de Collin, em determinados pontos. Vem morar a mansão após a morte dos pais, por não ter aonde morar. É lhe dado um quarto, nada mais. Ela não tem direitos. Ela não tem liberdade, espaço, e não pode exigir nada. Mas sua estadia na velha e misteriosa mansão atiça sua curiosidade, partindo em busca de exploração, que a leva a encontrar o jardim.

Collin, o rajá, como é apelidado por Mary, é tão mimado e esnobe quanto ela, é o senhor da casa quando seu pai não está, e ele nunca está. Com seus ataques de histeria quando não tem suas vontades atendidas, tem total liberdade para fazer o que quiser, mas opta apenas pela reclusão. Nada lhe falta, tudo ele tem, mas nada ele quer. Apenas restringe-se a ficar na cama e cultivar sua hipocondria.

É quando ambos se encontram que tudo passa a mudar: acostumados com a solidão, ninguém da mesma idade, ninguém do próprio sangue, agora presenteado com uma prima que sabe tudo sobre o lado de fora do quarto, com tanto em comum (sofrimentos, ausência dos pais, apatia, desesperança), ambos passam a crescer, se desenvolver, se libertar e, principalmente, construir seu caráter.

Agora que passam a se descobrir, Mary, empenhada no seu objetivo de acordar o jardim que encontrou, fica ligada a Collin, com o mesmo interesse. Todos na casa passam a estranhar as melhoras no comportamento de Collin, até a descoberta do seu contato com Mary. Aí que vem mais um diferencial surpreendente na história de Burnett: Collin não muda seu comportamento, não melhora, não fica dócil, nem bonzinho, apenas por “agora ter um amigo”, não pela “beleza da amizade e do amor”, não, nenhum desses clichês. Collin é forçado a entender e aceitar os outros como seres humanos, e não escravos de sua vontade, a partir do momento que é confrontado e esmagado por sua igual.

Um dos embates entre Mary e Collin é recorrente da ciumeira de Collin quanto a Dickon, apesar de admirá-lo profundamente, como todas as pessoas que conhecem Dickon. Em uma das manhãs Mary deixa de ver Collin para encontrar-se com Dickon no jardim, Collin não tolera passar a manhã solitário, já acostumado com a presença da prima, e desacostumado a penar seus dias sozinho na cama, ao reencontrá-la ameaça proibir a presença de Dickon e forçar a presença de Mary. Tal comportamento foi abordado de maneira interessantíssima no filme como um suposto triângulo amoroso, da maneira mais inocente e bela possível, de acordo com a idade latente em que vivem as crianças.

Acostumado a ter todas as suas ordens devidamente atendidas, Collin é surpreendido com um belo não de Mary, que contraria tudo o que ele quer neste momento, o que nos leva ao “chilique”.

-Você para com isso! Ela quase gritou. “Você para com isso agora! Eu odeio você! Todo mundo odeia você! Eu queria que todo mundo fosse embora desta casa e deixasse você berrar até morrer! Você vai morrer de tanto berrar daqui a pouco, e eu quero mesmo que isso aconteça!” (...) e se você der outro berro, eu vou berrar também (...) e eu consigo berrar bem mais alto que você!”. (BURNETT, 1911, p. 201).

Sendo uma plena lição de que as crianças precisam de limites, e também de liberdade, o que só pode ser dado com pais presentes, somos agraciados com a cena antológica de uma menina que não pode nada e faz tudo educando um menino que pode tudo e não faz nada. De amigos que não iriam longe sem uma boa briga. Frances quebra os paradigmas, escreve uma história infantil com crianças feias e chatas, com morte, briga, e a redenção no final.

É curioso notar que, sendo crianças de família rica, acostumada ao luxo e a ter tudo que poderiam desejar, buscam sua redenção justamente no natural, no que não custa nada. Mais além do que isto, no trabalho! Na tarefa deleitosa da horticultura, no jardim secreto, numa lição de que o campo é melhor que a cidade. E é!

Chegamos ao personagem central. O jardim. O jardim é uma alegoria para as crianças. Abandonado há 10 anos, doente, evitado, trancado, estéril. Como Collin, é a causa de todos os dramas da família, supostamente a causa mortis da Sra. Craven (a autora deixa isso em aberto), e também é, como Mary, a solução desses dramas.

Em essência, o livro é sobre um milagre psicológico: a completa regeneração de duas crianças de dez anos infelizes, autocentradas e absolutamente insuportáveis. Mary Lennox e Colin Craven, as crianças protagonistas, encenam uma sutil versão psicológica do enredo típico de Burnett. Eles recuperam não a riqueza, mas a felicidade natural infantil e a esperança no futuro. (LURIE, 1999, p. 11).

É no jardim que os pais de Collin passaram seus melhores momentos. É lá que a mãe de Collin morre. É ele que trás as lembranças mais felizes e doloridas da vida de Craven. Assim como Collin, é ele que é castigado, bloqueado, por lembrar a senhorita Craven. E com a intromissão de Mary, é ali que Collin encontra sua cura, aprende a andar e esquece os pesares de sua curta vida, almeja “viver para sempre”. Ali reencontra seu pai, que tão martirizado quanto ele, também encontra seu rumo. É ali que Mary deixa de ser espectadora da vida, e passa a ser protagonista dela. Ganha um motivo para esperar o próximo dia, deixa de esperar que a sirvam, a lavem, e passa a sujar as mãos com a terra. E junto às crianças, é o próprio jardim que também ganha sua vida de volta.

O livro é atualmente distribuído pela
editora Companhia das Letras,
 sob o selo  Penguin-Companhia.
Enfim, cada personagem do livro merece destaque, mesmo que não seja humana, o próprio jardim é o maior personagem da história. Frances Hodgson Burnett conseguiu criar uma história fora dos padrões, sem um clímax previsível, sem uma “grande batalha final”, fugindo dos habituais clichês, mesmo ao usar um deles: o do parente próximo que quer se apoderar da herança, é quebrado ao informar que este até gostaria disso, mas não que fosse mover uma unha para tanto. Uma narrativa da rotina, do diário de pessoas que tinham traumas a serem resolvidos, e conseguiram, de maneira poética, poética como a própria escrita de sua autora, O Jardim Secreto é inteiro uma poesia e parafraseando a Mary Lennox do filme de 1993, “se você for ver, o mundo inteiro é um jardim”.